Em uma manhã de sábado, pegamos estrada logo cedo. Partimos de Itabuna em sentido a Mascote, um município de 13 mil habitantes no sul da Bahia, às margens do Rio Pardo. Uma típica cidade rural, pequena, pouco movimentada, cuja maior parte da população vive no campo.
No caminho, notamos áreas preservadas de Mata Atlântica intercaladas com pastos e lavouras cacaueiras, atividades que baseiam a economia do município. Além destas, podemos observar cada vez mais os monocultivos de eucalipto, desertos verdes que se expandem do extremo-sul para essa região.
Nosso destino é Novo Horizonte, um povoado próximo a São João do Paraíso, distrito de Mascote, e nosso objetivo é compreender o porquê de uma contradição: embora esteja situado às margens do Rio Pardo, os moradores dessa comunidade enfrentam diariamente a falta de acesso à água potável.
Vista do povoado de Novo Horizonte, distrito de Mascote (BA) / Hellena Castro
Nós, comunicadores, pela primeira vez naquela comunidade, não conseguimos conter o encantamento com a beleza do local. As casas pequenas e coloridas, os jardins, os bares com belas vistas para o rio, a igreja no ponto mais alto da comunidade, a vocalização das aves. Entretanto, havia pouco movimento, algumas estruturas com sinal de abandono, um paradeiro geral.
À primeira vista, notava-se um rio mais preservado do que sua parte que passa em Mascote, sem tantos sinais de assoreamento e com grandes áreas de mata ciliar. Ali, o Pardo também recebe um afluente, o Rio Panelão. Encontramos um pescador que explicou que o Panelão nascia em Camacan e recebia esgoto e agrotóxicos no seu curso. Por conta disso, a pesca se tornava mais difícil, ele conta insatisfeito. De fato, quase não vimos movimento no rio, apenas uma pequena embarcação passou enquanto conversávamos com o pescador. Em outros pontos não havia ninguém tomando banho, apenas mais adiante um grupo de mulheres lavava roupas.
Afluente do Rio Panelão encontra o Rio Pardo / Hellena Castro
Não havia muitas lavouras também. Visitamos um quintal pouco produtivo de plantio de cacau e pouca diversidade. O senhor nos explicou que quase não tinha tempo para cuidar, pois não residia de fato no povoado. Contou também que poucos plantavam em Novo Horizonte. Mais tarde descobriríamos que houve um processo de apropriação das terras da comunidade por pecuaristas e empresas de celulose.
'Água tem, só não para beber'
Entre prosas, fotografias e anotações, conhecemos no final da manhã Dona Célia, referência da Articulação Rio Pardo Vivo e Corrente, quando ela retornava de compromisso na cidade. Ao iniciarmos o diálogo, perguntamos se poderíamos gravar a conversa e a mesma respondeu com entusiasmo que sim, que era de falar mesmo que ela gostava. Ao longo da conversa, percebemos o porquê: Dona Célia carrega uma imensa bagagem de luta em defesa de seu território, tendo estado à frente de vários processos de denúncia, formação política e mobilização popular.
Mulher negra, na casa dos sessenta anos, ela consegue conciliar suas diversas tarefas enquanto coordenadora da igreja local, onde também desempenha a função de ministra da eucaristia, vice-presidente da Associação de Novo Horizonte, e, claro, de militante em defesa do Rio Pardo, integrando a Articulação Rio Pardo Vivo e Corrente.
Às margens desse rio, em uma paisagem que nos causava deslumbramento, dialogamos sobre as problemáticas que a comunidade vem enfrentando nos últimos anos. Dentre elas, a poluição das águas por esgotos e agrotóxicos, os monocultivos, a dificuldade de acesso à saúde pública, a falta de transporte público para a zona urbana e o fechamento, há cerca de dois anos, da única escola infantil que possuem.
“Água nós temos, você viu aí, mas o que falta é o mais importante, que é pra beber”, salienta Dona Célia.
Com suas casas coloridas, jardins floridos e um rio caudaloso margeado pela Mata Atlântica, Novo Horizonte costumava atrair muitos turistas, especialmente no verão. No entanto, cada vez mais esse cenário vem se alterando, com baixa procura. O principal motivo é o nível de poluição do Rio Pardo e seus afluentes, onde são jogados os esgotos de diversas cidades, como Itambé, Itapetinga, Pau Brasil e Camacã. Também contaminam estas águas os agrotóxicos utilizados em plantações da região, onde predominam os monocultivos de eucalipto e café.
A beleza da comunidade contrasta com seu abandono, causado principalmente pela poluição do Rio Pardo / Hellena Castro
Para além do turismo, as águas eram utilizadas por alguns locais para pesca e pela comunidade em geral para o consumo e uso doméstico. Atualmente, as pessoas precisam comprar água mineral vendida em galões para beber, fator que tem encarecido o custo de vida para essas famílias. Para cozimento de alimentos, lavagem de roupas e banhos não há saída: usam a água turva do rio.
Como era de se esperar, a água costuma causar verminoses nas crianças. Há tempos a comunidade vivencia problemas de pele, como coceiras e vermelhidão. Para agravar a situação, o posto de saúde da comunidade não tem regularidade de funcionamento. Segundo Dona Célia, os moradores ficam meses sem ter a “visita” do médico. Quando realizamos a entrevista, a mesma afirmou que já contava três meses completos desde sua última vinda, quando teve a sorte de conseguir atendimento — já que, em uma comunidade majoritariamente idosa, onde vivem cerca de 170 pessoas, são distribuídas apenas 10 fichas. Caso alguém necessite de atendimento com urgência, precisa ir à zona urbana e, para isso, recorre às lotações, que cobram valores altos, principalmente levando em consideração a renda dos moradores da comunidade, onde muitos dependem de benefícios sociais.
O posto de saúde da comunidade é aberto sem nenhuma periodicidade, deixando os moradores sem atendimento ao longo de meses / Hellena Castro
É como se um povoado na beira de um rio tivesse sido largado sem água potável, impedido de pescar, sem direito à saúde e educação e sem conseguir desenvolver um turismo. Dona Célia lamentou a situação especialmente para a juventude, que não consegue permanecer no território.
Acordo não cumprido
Esse, inclusive, foi um dos temas debatidos em um intercâmbio de jovens da Bacia do Rio Pardo em Novo Horizonte em novembro de 2023. A Articulação do Rio Pardo realizou na ocasião a “Audiência popular sobre a problemática de acesso à água potável em Novo Horizonte”, onde compareceram representantes do poder público, de movimentos sociais, estudantes e pelo pecuarista dono de uma propriedade ao lado do povoado.
Nesta fazenda há uma nascente que poderia se tornar uma alternativa para o acesso à água potável de Novo Horizonte, se fosse devidamente recuperada, protegida e canalizada para esse fim. A Secretaria de Meio Ambiente, o fazendeiro e a Associação de Novo Horizonte acordaram que o poder público iria intermediar junto às pastas competentes as ações de viabilidade do acesso à água e o fazendeiro colocou a propriedade à disposição para as operações.
Até o momento, mais de um ano depois da assinatura do acordo, as ações não foram iniciadas. Os moradores estimam em centenas de reais os gastos em água potável por mês enquanto aguardam o cumprimento do acordo. As informações aparecem difusas, com notícias de transporte de equipamentos para as obras e promessas de início das operações, mas nada se concretiza, nem mesmo um diálogo formal sobre a situação.
Na ocasião, fazíamos um trabalho em parceria entre o Centro de Estudos e Ação Social e a Comissão Pastoral da Terra na construção da 3ª Romaria da Terra e das Águas de Mascote – Jacarandá, organizada pela Articulação Rio Pardo Vivo e Corrente. Na romaria, realizada em outubro de 2024, foram apresentadas várias denúncias acerca da gestão das águas pelos municípios e a situação vivida pelas populações que dependem do rio para viver e produzir, entre elas a de Novo Horizonte.
3ª Romaria da Terra e das Águas de Mascote – Jacarandá, organizada pela Articulação Rio Pardo Vivo e Corrente / Hellena Castro
Dona Célia e toda a comunidade refletem sobre qual seria o objetivo da falta de ação do Estado em cumprir um acordo que foi reivindicado pelo povo e firmado entre o poder público e o fazendeiro de forma pacífica. Nos chama a atenção a violação velada de um direito básico do povo, o acesso à água potável onde outro dia a mesma era abundante. Ao fim, percebemos que são facetas de um projeto onde o povo é colocado em um lugar de subordinação para que se avance uma lógica de produção destruidora dos modos de vida historicamente constituídos.