Imagino que eu não seja o único que tem o dia 31 de agosto de 2016 nítido na memória. Sentei no sofá, com a janta em mãos, para me juntar aos meus pais, os dois com os olhos vidrados na televisão, para assistir a votação que derrubaria a então presidenta Dilma Rousseff. Em meio aos discursos cínicos dos parlamentares, do tilintar dos talheres nos pratos e as comemorações da minha família de direita, eu rolava a timeline, onde via pessoas progressistas que eu conhecia aflitas, perdidas. Parecia que a ficha havia caído de que a permanência do PT nos últimos 12 anos no executivo não significava que a ideologia de esquerda era dominante, pelo contrário, ela estava mais fraca do que nunca. Foi nesse dia, que pela primeira vez, vi essas pessoas falarem de "trabalho de base".
Golpes, retrocessos, contrarreformas seguiram os anos, e hoje sou eu quem me tornei a pessoa de esquerda aflita, me questionando: que diabos é esse tal trabalho de base tão importante e como fazê-lo? Através de leituras e estudos, não consegui encontrar uma resposta consistente para esse questionamento. Já vi pessoas argumentando que trabalho de base é fazer grupo de estudos; já vi pessoas dizendo que é distribuir jornais em porta de fábrica; já vi gente falando que é distribuir marmita. Depois que me organizei em um movimento social, percebi que de fato essa é uma questão em aberto, pois há uma linha geral do que se entende por trabalho de base, mas é preciso adaptá-la em cada realidade. Então resolvi botar a cara a tapa também e tentar contribuir nesse grande e caudaloso rio da história dos povos.
"Respire, tá todo mundo tentando acertar." / Imagem: Kaue Vargas
Iniciamos nossa inserção num território periférico da minha cidade, Guarapuava, através de um contato com uma liderança do local. Passamos alguns meses tentando emplacar alguma atividade com a associação de moradores. A realidade é dura para todos nós, qualquer atividade que desejássemos realizar precisava respeitar o pouco tempo que temos, o pouco recurso, e ainda garantir que fosse algo leve e prazeroso para garantir o envolvimento da militância. Conseguimos, por fim, encontrar uma atividade que reunia alguns moradores, sobretudo a criançada: um CineDebate. Através dessa atividade simples, conseguimos atrair mais voluntários, estabelecer contatos e construir uma presença (ainda que tímida) dentro do bairro. Embora, em um primeiro momento, possa parecer algo simples, muitas crianças e jovens que participaram das sessões nunca tinham assistido a um filme em uma telona. Compartilhamos lamentações, alegrias, sonhos e dores ao longo de um ano. Os debates e conversas que surgiam das temáticas dos filmes nos ajudaram a ter uma proximidade enorme com a vida na comunidade e a estabelecer um vínculo com os moradores. Tiramos dali valiosas lições que nenhuma universidade poderia nos ensinar: o trabalho de base precisa auxiliar o território de forma concreta, seja no acesso à cultura, educação, alimentação, etc., para que, de fato, a militância e a comunidade tenha um propósito para estar reunida e atuante, periodicamente.
Durante nossos debates, uma necessidade do bairro nos chamou a atenção: uma grande parte dos adultos não possuía sequer o ensino médio completo. Decidimos no ano seguinte fazer uma atividade mais ousada, mais dispendiosa e mais cansativa: um cursinho popular. Desde a captação de recursos para conseguir tirar o cursinho do papel, até a articulação com os professores voluntários e os espaços em que realizaríamos as aulas. Tudo foi feito com imenso carinho e dedicação por parte de todos. E isso transparecia. As pessoas se juntavam a nós, se interessavam pelo movimento, perguntavam, pediam para participar. Desde a juventude da universidade, de onde saíam os professores, até a juventude do bairro, muitas vezes filhos das alunas do cursinho. Esse fazimento gerou um processo de identificação do espírito de mudança de vida feita por nossas próprias mãos, do povo.
Certa vez assisti uma entrevista do Frei Betto, em que ele dizia que na "conversão" para a esquerda, você pode convencer a pessoa "pelo cérebro, pelo coração ou pelo estômago". Isso ressoa comigo quando penso na nossa experiência nesses dois anos de trabalho de base. Nossa primeira tentativa, pelo cérebro, de 6 jovens socialistas que queriam "desenvolver a consciência de classe" no bairro, teve um resultado morno, despertando uma reflexão aqui, outra ali. Aproximamos nesse período poucas pessoas, todas já convictamente de esquerda, todas de fora do bairro. Nossa segunda tentativa, pelo estômago (entendida aqui como uma metáfora de auxílio direto para a qualidade de vida das pessoas) aproximou para dentro do nosso grupo não apenas as pessoas diretamente beneficiadas pela nossa atividade, mas também pessoas que se identificavam com o nosso zelo e carinho, além do típico estudante socialista querendo contribuir no trabalho de base. Aumentamos nossas fileiras com pessoas da comunidade, da universidade, ateus, evangélicos, de esquerda e pessoas pouco politizadas, mas que veem em nós a possibilidade de mudar a realidade.
Penso que a maior lição que tiramos dessa segunda experiência é que, se tentamos conquistar pelo cérebro logo de primeira, aproximamos só outros chatos que perderiam horas debatendo teoria política obscura do século XIX. Mas, ao tentar conquistar pelo "estômago", conquistamos pelo estômago, pelo coração e pelo cérebro.
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*Leonardo V. é cientista de dados e militante do Levante Popular da Juventude
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.