“A permanência desse projétil no nosso corpo é uma forma de abalar a nossa espiritualidade e fé”, diz Vilma Rios, liderança da aldeia Yvy Okaju, que carrega uma bala no peito e outra no braço. “Isso nos faz questionar se realmente existe alguém olhando por nós”.
Desde 2023, os Avá-Guarani que vivem na Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, no oeste do Paraná, enfrentam uma escalada de violência por disputa de terras. Pelo menos 12 indígenas foram alvejados em ataques promovidos por fazendeiros e agricultores. Dez deles continuam com projéteis alojados no corpo.
Outra indígena, que preferiu não se identificar, foi atingida por nove tiros na perna em janeiro de 2024. “Agora eu vou viver até o fim com essas marcas no meu corpo. Quando olho e sinto a dor, lembro do ataque e tenho medo que ocorra novamente”, relata. Um dos projéteis permanece próximo ao joelho, causando incômodo e dificultando sua locomoção.
O médico Juliano Canavarros, especialista em retirada de projéteis, explica que a remoção nem sempre é recomendada. “Há casos em que a extração pode causar mais danos do que a permanência da bala”, diz. O procedimento só é indicado se houver risco de infecção, inflamação ou se o projétil estiver próximo a vasos sanguíneos importantes.
Isso ocorre porque a maioria dos metais utilizados em projéteis, como o chumbo, não provoca reações no organismo. Além disso, ao ser disparada, a bala incandescente do revólver, tornando-se estéril devido à alta temperatura. O procedimento padrão é limpar o ferimento e remover impurezas externas, como fragmentos de tecido.
Vilma Rios foi baleada em agosto de 2024. “Eu não preciso carregar esse inimigo comigo até o meu último suspiro. É desesperador pensar em viver com isso para sempre”, diz ela. “Ter a chance de que essa bala seja retirada também é uma forma de justiça”.
Ela conta que procurou a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) relatando incômodo com o projétil no corpo e o desejo da retirada, mas foi informada de que não é um procedimento necessário, visto que não deixou nenhuma sequela.
“Eles entendem do corpo físico, mas não entendem sobre nossa espiritualidade”, diz Vilma. “Essa bala me incomoda. Me faz lembrar de que a minha vida estava nas mãos de um estranho e que a minha sobrevivência dependeu disso”.
Lideranças da aldeia já manifestaram ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) o desejo de que os projéteis sejam retirados dos corpos das vítimas. Camille Vieira da Costa, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (Nupier) da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), afirma que um ofício foi encaminhado para a área de emergência do Ministério da Saúde para entender se essa prática é comum e o que pode ser feito.
"Se não há nenhum tipo de risco para a retirada desse projétil deve ser realizada. A prática de não retirada dos projéteis no Hospital Bom Jesus, em Toledo, pode sim configurar uma prática de racismo institucional em relação a essa comunidade indígena", diz a defensora. "Nós realizamos um termo de atendimento para algumas pessoas e, se eles tiverem o interesse, vamos fazer um pedido administrativo para que a bala seja retirada".
O Hospital Bom Jesus, de Toledo, informou em nota que todo atendimento que representa risco à vida foi realizado, e os protocolos clínicos, de acordo com o Ministério da Saúde, foram seguidos. "Já com relação a retirada de projéteis não é possível informar as condutas médicas realizadas de acordo com o prontuário, a fim de não expor os pacientes e em respeito à lei LGPD", diz em nota.
Enquanto aguardam respostas, os Avá-Guarani buscam força na espiritualidade. “Nossa casa de reza sempre foi um lugar de fé e esperança, mas ultimamente tem sido também uma fortaleza”, conta Vilma.
O historiador Clóvis Brighenti, que pesquisa os Avá-Guarani, destaca a importância das práticas espirituais da comunidade. “A recente mudança no nome da aldeia reflete essa busca por proteção e renovação espiritual”, explica. No final de 2023, uma Txaray’i, rezadeira do povo, rebatizou a aldeia Y’Hovy como Yvy Okaju, que significa "terra de paz". O território precisava de paz para que as crianças voltassem a dormir e a comunidade pudesse viver sem medo.
“A aldeia estava precisando mudar o nome porque estava muito suscetível a ataques. Isso revela uma relação conectada entre as questões materiais e imateriais, os seres sagrados e os espíritos. Eles buscam o equilíbrio através das rezas diárias e isso é fundamental”, diz o historiador.
“Se eu estivesse sozinha tentando suportar tudo isso, eu não conseguiria, mas graças à nossa casa de reza eu tenho suporte”, diz Vilma. “E se existe a possibilidade de retirar essas balas alojadas no meu peito, eu preciso muito”.