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Dia da Visibilidade Trans: A Casa das Benvenutty e as políticas de produção cultural de João Pessoa

Hoje no estado da Paraíba, esse movimento discute sobre protagonismo e permanência de pessoas trans

Por Isaac Urano* e Xaman Minillo**

 

Em 2024 o Brasil foi, pelo 16º ano consecutivo, o país que mais matou pessoas trans no mundo, e a região Nordeste liderou o ranking. Esses dados, da Rede Trans Brasil evidenciam a urgência de ações contra a violência desumanizante e que invisibiliza essas vidas. É diante desse cenário negativo que a luta de pessoas fora da norma cisgênera fica cada vez mais em evidência. Visibilizar suas vivências de forma a celebrá-las, cresce a necessidade de pensar a existência trans, travesti e não-binária fora do espectro da violência e contribuir para esse movimento e com quem o constrói.

No dia 29 de Janeiro de 2004 nasceu a campanha “Travesti e Respeito” lançada pelo Ministério da Saúde, uma ação realizada graças às movimentações de ativistas trans ao Congresso Nacional, entre elas Fernanda Benvenutty, cidadã paraibana. Desde então, a data é marcada como o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data sinaliza comprometimento em promover ações voltadas à cidadania de identidades trans, travestis e não-bináries, encoraja políticas públicas voltadas à população, além de ser um marco de repúdio contra o ódio e o preconceito.

Fernanda Benvenutty foi um importante ícone pela vida plena de pessoas trans. Tendo suas ações reconhecidas a nível nacional, Fernanda conseguiu superar as adversidades impostas à sua identidade e fundou a ASTRAPA, Associação de Pessoas Travestis, Transexuais e Transfeministas da Paraíba, hoje ASPTTRANS. Também foi candidata ao cargo de vereadora em João Pessoa e de deputada estadual. Mesmo não atingindo esse objetivo, inspirou jovens a lutar por dignidade e qualidade de vida, e mesmo fora do Estado influenciou no desenvolvimento de diversas políticas públicas voltadas à comunidade. Dentre os legados de Fernanda há uma semente que plantou e hoje floresce e dá frutos: a Casa das Benvenutty. 

A Casa das Benvenutty é um coletivo criado dentro da Comunidade Ballroom pessoense que teve sua gênese em 2020, na periferia e imersa no contexto pandêmico. Nasceu como um alicerce para a comunidade LGBTQ+ levando o sobrenome de Fernanda como homenagem máxima. O coletivo é coordenado por Gabriella, estudante de Serviço Social e ativista política; Ayira, mestranda em Antropologia e o rosto da comunidade ballroom paraibana; e Lis Benvenutty, professora de dança formada pela Universidade Federal da Paraíba. Travestis que atuam como produtoras culturais por intermédio da sua casa.

A comunidade ballroom na qual a casa está inserida nasceu da construção cultural de um grupo político. Foi criada nos Estados Unidos majoritariamente por pessoas trans pretas e latinas imigrantes, com o intuito de celebrar seus corpos que eram segregados, sua existência e resistência. Hoje no estado da Paraíba, esse movimento discute sobre protagonismo e permanência de pessoas trans nos órgãos de representação política. Um exemplo recente foi a organização da comunidade para se fazer presente na 4ª Conferência Municipal de Cultura que ocorreu em outubro de 2023, sendo bem sucedida em eleger Gabriela Benvenutty como delegada. A comunidade ballroom paraibana hoje está em todo o Brasil, atuando dentro de uma Conferência de Cultura. Pioneira em conseguir tal feito, tornou-se a principal representação da luta pelo reconhecimento cultural potente da comunidade à nível nacional.

Gabriella Benvenutty que carrega o legado de Fernanda Benvenutty na Paraíba, além de ser uma representação política atual para a comunidade, engaja uma rede de pessoas LGBTQ+ no Estado, sendo um signo de força e identidade. Foi candidata à vereadora no ano de 2024, e durante sua campanha, idealizou, com sua casa e com o apoio de toda uma comunidade, a passeata Marsha Benvenutty. Mobilizando amigos e eleitores no bairro de Mangabeira, a Marsha descentralizou a origem e foco de discursos políticos que muitas vezes se resguardam à população fora da periferia. A Casa das Benvenutty também idealizou outras produções como a Benvenutty Fest, diversas balls e encontros da comunidade ballroom, como a Pandora Ball no Centro Cultural de Mangabeira e a Coqueball na Praça do Coqueiral, polo das batalhas de rima de uma comunidade jovem e periférica também em Mangabeira. Estas iniciativas salientam a relevância e a agência de comunidades e culturas da periferia que sofrem com a falta de visibilidade e reconhecimento enquanto fator cultural local pelo Estado, notável na falta de projetos de financiamento.

No último ano, o governador João Azevedo autorizou um investimento de 36 milhões de reais na área da cultura, assinando o decreto de regulamentação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (Pnab) na Paraíba. Se cultura é modo e qualidade de vida, vale-se pensar o porquê tal investimento não chega às parcelas que vivem, fomentam e movimentam cultura na periferia. A economia da cultura circula principalmente nas regiões mais centrais da cidade e não parece ter a urgência de transcorrer para outras localidades, ignorando as dificuldades de acesso, transporte e investimento de quem acessa e quem está por trás de produções culturais periféricas.  “A gente tá querendo chegar em outros espaços. Muito se fala em ocupação do centro, produção no centro, mas existem essas áreas que estão na periferia e essas pessoas que vivem nas periferias muitas vezes não acessam.” diz Ayira, referindo-se às limitações que enfrentam na promoção de atividades culturais em locais que fogem do circuito cultural tradicional. Lis complementa: “A gente entende que descentralizar a cultura é isso, estar numa praça treinando e a galera chegar, ver cinco ou seis travestis treinando, dançando vogue femme, isso faz com que a cultura impulsione.” Ademais, falta comprometimento dos órgãos em realizar o pagamento de investimentos realizados por meio de editais extremamente burocráticos. No dia 28 de Janeiro o Fórum dos Fóruns de Cultura da Paraíba repudiou publicamente a falta de comprometimento com os pagamentos do edital do Pnab que não foram realizados e a falta de clareza aos projetos selecionados pelo Fundo Municipal de Cultura, denunciando o descumprimento de ações voltadas à cultura em João Pessoa.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a cultura “deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrangem, além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os sistemas de valores, as tradições e as crenças.” Porém a visibilidade da pluralidade de produções culturais é limitada por fatores econômicos e de infraestrutura. Gabriella Benvenutty afirma, sobre a dificuldade de construir cultura em João Pessoa: “A gente tem como desafio, e pra mim isso é gritante, são as limitações financeiras, porque a nossa comunidade tem artistas, produtores, que são competentes e capazes de fazer um evento de qualquer tamanho, mas infelizmente as limitações são o que impossibilita a gente de fazer muita coisa. Não se faz qualquer evento sem pagar o básico”.

A atuação política da casa durante a campanha de Gabriella abriu acesso a outros espaços, como demonstrado com o convite para a Casa das Benvenutty se fazer presente na segunda edição da Marsha Trans em Brasília. “O convite vem como forma de reconhecimento do nosso trabalho, que viemos desenvolvendo no dia a dia. Somos corpas políticas então o âmbito que a gente adentra, a gente tá ali fazendo uma micropolítica, movimentando e transformando o espaço que a gente ocupa” diz Lis Benvenutty.

No Dia da Visibilidade Trans, a representação de pessoas transvestigêneres em todos os espaços políticos se faz cada vez mais necessária. Pensar cultura popular sem olhar para as interseccionalidades não é suficiente se desejamos uma sociedade plural e que reconheça diversidade de vivências. É urgente discutir políticas públicas de democratização de acesso à arte e cultura para pessoas trans, assim como fomentar projetos idealizados pela população que já ocorrem, mas que são negligenciados pelo Estado. Com tantos agravantes contra a comunidade LGBTQIAPN+, apoiar e dar destaque a figuras que a representam é primordial. Seja nos espaços de decisão política, na educação, na saúde ou na cultura como as Benvenutty. Pessoas trans paraibanas estão promovendo movimentos garantidores dos direitos de viver e celebrar positivamente sua existência. Como Gabriella reafirma: “Essa construção da travestilidade é construir referências”.

*Isaac Almeida Sousa Urano é discente do oitavo período de Relações Internacionais da UFPB. Crítico de cinema e membro do projeto de extensão Diálogo GENERI – Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais.

**Xaman Minillo é docente e coordenadora do curso de graduação em Relações Internacionais da UFPB, membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais – PPGCPRI UFPB. Trabalha com temas de políticas sexuais e de gênero, estudos queer e decoloniais, feminismos e ativismos LGBTQ+ africanos e indígenas. Coordena o grupo de estudos de Políticas Sexuais Internacionais – PoliSexI, e é responsável pelo projeto de extensão Diálogo GENERI – Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais. Contribui para a promoção da igualdade de gênero na comunidade acadêmica em suas pesquisas, aulas, e como membro do grupo MulheRIs e co-coordenadora da Rede Latino-Americana MulheRIs+MujeRIs.

***A opinião contida neste texto não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba.

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