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Ouro de tolo

Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca cheia de dentes esperando a urna chegar

Eu devia estar contente porque tenho um prefeito que é jovem e legal, faz parques e ‘quetais’, além de muito sucesso nas redes sociais. Ele às vezes tira a casa do povo e que não gosta muito de ouvir quem o questiona, mas que é desenrolado e tem a manha de não se meter em briga quando acha que não vai ganhar.

Eu devia agradecer ao Senhor porque quem toma conta da cidade não é de extrema direita e porque ele diz que ouve a ciência, embora nem sempre faça o que sabe que deve fazer sobre isso.

Eu devia estar feliz porque a governadora do estado também está ligada, diz que não gosta de corrupção e mantém uma distância regulamentar do fascismo e de todo um sentimento ruim que tem ganhado moral demais no Brasil e no mundo.

Eu devia estar alegre e satisfeito porque tá todo mundo dizendo que a disputa eleitoral do ano que vem em Pernambuco vai ficar centralizada por essas duas pessoas antenadas, preparadas, que conhecem a política de perto e cujos pais foram governador e vice há coisa de 10 anos, então é tudo da casa e assim está tudo bem.

Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso porque aqui em Pernambuco o bolsonarismo não se cria enquanto em muitos lugares do Brasil já tem gente com medo de afundar de vez na lama do conservadorismo, do preconceito, do racismo e da lgbtqia+fobia sem que se possa fazer alguma coisa.

Mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa.

Eu devia estar contente porque neste ano pré-eleitoral a gente vê prefeito e governadora disputando os mesmos partidos, distribuindo migalhas para o fisiologismo e tentando de todo jeito garantir o apoio do Partido dos Trabalhadores, enquanto a gente segue sabendo que apenas Lula, hoje, tem voto para garantir a continuidade da democracia (mesmo essa formal, frágil e capenga) no Brasil.

Mas confesso, abestalhado, que eu estou decepcionado.

Porque foi tão difícil chegar até aqui. E hoje a gente já sabe que para se comunicar direitinho tem que ter mídia pública e democratização das redes. Porque derrubar mata para fazer prédio não está com nada e porque moradia precisa ser prioridade, enquanto tem um monte de prédio vazio e gente sem casa por todo canto que a gente vê.

Porque ninguém consegue mais negar que o proibicionismo só serve pra matar e prender gente e que a polícia que mata também morre demais. Porque investimento em cultura não pode ser perfumaria em tempos de inteligência artificial e precarização do trabalho; e porque a economia criativa pode, sim, tirar gente do buraco, mas também precisa de política e de grana.

Porque vender coisa pública é abrir mão de garantir direitos; e porque participar da democracia é fundamental, mas dá um trabalho danado.

E agora eu me pergunto: E agora? Eu tenho uma porção de coisas grandes para conquistar e eu não posso ficar aí parado.

Eu deveria estar feliz pelo Senhor ter me concedido a graça de morar num estado em que a diversidade cultural é absurda e seu povo tem uma vontade danada de trabalhar e vencer na vida.

Ah! Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado. Tik tok, bolo quente, cabelo platinado, reels de corrida, meme, “olha-eu-trabalhando-em-pleno-sábado” e “Que-bonito-ambientalista-se-abraçando-com-árvore-mas-o-desenvolvimento-é-mais-importante-que-água”.

É você olhar no espelho e sentir um grandessíssimo radical. Saber que somos poucos, não gostamos de política e que apenas 10% da população está filiada em partidos.

E você ainda acredita que é independente, protagonista, empreendedor, que fica 12 horas por dia logado num aplicativo e está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social.

Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes esperando a urna chegar.

Porque longe das siglas e das cores que parecem separar ideologias, no cume brilhante do meu olho que vê, se levanta a chama eloquente e ardente do sonho de um mundo realmente melhor.

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