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A luta é uma só – O racismo contra chineses

A luta contra o racismo é coletiva

Como ascendente de origem asiática em um país onde a etnia asiática é minoria enfrento situações dolorosas de racismo. No ambiente universitário, por exemplo, já ouvi de colegas que nem parecia chinesa, afinal eu não era “suja e fedida”. Ano passado, durante uma aula, ouvi de um/uma docente que eu não deveria pesquisar sobre direito chinês, porque “a China é diferente demais de nós” e, portanto, eu deveria estudar o “direito europeu que é muito mais parecido com o sistema jurídico brasileiro”.

Já ouvi também de um colega homem que “o racismo contra chineses é irrelevante no contexto brasileiro”, ocasião na qual utilizou de forma equivocada conceitos de Lélia González, uma das minhas referências no estudo do feminismo e sobre quem já escrevi. Se tem algo que González defendeu foi a necessidade da inclusão de todas e de todos, afirmando que a América Latina tira sua força justamente de sua pluralidade. Vejo nessa fala do referido colega, além do ato racista de menosprezar o sofrimento dos chineses, mansplaining (em português algo como “explicação do homem”, que consiste no ato de explicar a uma mulher, muitas vezes de forma excessivamente confiante, às vezes equivocada, e sem considerar que a mulher talvez até já saiba sobre o assunto).

No ambiente familiar, também vivenciei situações difíceis, até porque ocorriam contra meu pai, que migrou para o Brasil nos anos de 1980. Meu pai era comunista convicto e tinha um clássico restaurante chinês. Havia clientes que questionavam se o cardápio da família incluía fetos humanos, afinal “chineses são animais que comem qualquer coisa” ou que, ao relatar sua viagem à China, afirmavam que lá era “sujo demais”.


“Apoie a luta anti-imperialista dos povos do mundo”. / Imagem: chineseposters.net

Em razão do seu posicionamento político, alguns clientes afirmavam a meu pai que o comunismo é “maligno” e que seria “extirpado do mundo”, que se ele achava tão bom que fosse para Cuba ou retornasse à China, porque aqui não era bem-vindo. Os ataques verbais eram muito frequentes, mas chegou a ocorrer uma agressão física também, perpetrada por um advogado contra meu pai. Em 2018, ele já havia falecido, porém, os ataques verbais se intensificaram e o sentimento de medo nunca foi tão forte em mim. Atribuo esse aumento às falas racistas do então candidato à presidência Jair Bolsonaro.

Apesar da pouca visibilidade que tem, o racismo contra chineses não é fenômeno recente. Figuras poderosas implementaram todo tipo de mecanismo a fim de diminuir a dignidade do povo chinês. A ver, por exemplo, a doutrina do perigo amarelo, utilizada pelo imperador alemão Guilherme II para justificar a invasão e a colonização da China pelas potências europeias. A partir da ação coordenada das potências europeias fundamentadas nessa doutrina, o povo chinês foi brutalmente reprimido e obrigado e permitir a exploração de suas riquezas naturais, de seu povo e de seu território.

No Brasil colônia, sabe-se que o príncipe Dom Miguel, filho de Dom João VI de Portugal, liderou uma turba de caça a chineses no Rio de Janeiro, utilizando-se de cães e armas de fogo. Trazidos inicialmente para trabalho escravo na Fazenda Imperial, não conseguiram se adaptar devido às condições tropicais com as quais não estavam acostumados, sendo reduzidos no fim de suas vidas a meros animais de caça. Por volta da década de 1880, ainda em solo do continente americano, no Canadá e nos Estados Unidos foram promulgadas leis para proibir e/ou desencorajar a presença da imigração chinesa, despindo tal comunidade de cidadania e lhe impondo condições mais difíceis de vida naquele momento.

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“Novos e velhos colonialistas, saiam da Ásia, África e América Latina!”. / Imagem: chineseposters.net

Durante a Segunda Guerra Mundial, o estado fascista japonês cometeu atrocidades inimagináveis contra o povo chinês, a ver o episódio do Massacre de Nanquim, por exemplo, em que as tropas japonesas por seis semanas cometeram execuções e estupros em massa contra o povo daquela cidade. No mesmo período, há que se mencionar também a criação da Unidade 731 pelos invasores japoneses, onde os piores experimentos biológicos foram impunemente realizados em crianças, mulheres e idosos chineses. As vítimas foram desacreditadas e suas falas classificadas pelo ocidente como “propaganda comunista”, assim como inicialmente aconteceu com relação às denúncias feitas pelos soviéticos sobre os campos de concentração nazista e o genocídio do povo judeu idealizado por Hitler.

Mais recentemente na história, durante a pandemia do coronavírus, nos Estados Unidos houve um aumento de ao menos 150% nos casos de ataques contra a comunidade asiática, levando a tristes episódios de agressão física e execução de asiáticos no país. Retornando ao Brasil, notícia de dezembro de 2024 denunciou a exploração de chineses em condições análogas à escravidão na construção de uma fábrica de automóveis na Bahia. É inegável, portanto, que a questão dos chineses é relevante e sempre esteve presente na formação da história da sociedade moderna ocidental.

O racismo contra chineses é só mais uma face do racismo em sentido amplo, sendo um assunto de extrema relevância nos debates contemporâneos sobre igualdade racial. Penso que o racismo procura operar de forma muito sútil, se entrelaçando a outros fatores, a fim de oprimir a comunidade, afetando de forma muito mais intensa as minorias de classe, gênero e raça/etnia. Alegar que a causa chinesa não tem valor nas discussões de racismo no Brasil não deixa de ser uma forma velada de conivência com essa violência. Afirmar que o direito chinês nada tem a oferecer aos estudos jurídicos no Brasil é somente uma forma de disputar hegemonia, em prol de uma visão de mundo que no fundo só pretende nos manter na dependência e na submissão ao ocidente.


“Apoie resolutamente a luta justa dos negros americanos!”. / Imagem: chineseposters.net

Dito isso, como minoria racial, não me vi ainda contemplada nas discussões antirracistas e antimachistas, não só no ambiente acadêmico, mas também nas políticas públicas e nas discussões em geral. Não estou aqui diminuindo todos os esforços até aqui empregados, pelo contrário: afirmo veementemente que são medidas fundamentais e de muito valor as quais devem ser fortalecidas e ampliadas, a fim de que sua proteção alcance também aqueles que ainda não foram contemplados.

A boa e velha representatividade poderia ser resgatada. Na sociedade brasileira, aliás, há uma diversidade de migrantes, muçulmanos, indígenas, ciganos e asiáticos, e eles têm todo direito de ser reconhecidos e de acessar todas as condições possíveis para seu melhor desenvolvimento. Como são minoria, no geral enfrentam dificuldades para participar dos espaços de discussão. Penso que seria interessante que os grupos de igualdade de gênero e racial estimulassem a participação dessas pessoas vulneradas, com medidas tais quais a garantia de cotas, mas também com mecanismos e políticas de ampliação da participação, da permanência e da qualidade destas.

Essa solidariedade na luta antirracista pode ser muito profícua, a ver por exemplo o rico intercâmbio entre os chineses e o grupo dos Panteras Negras. A revolução chinesa de 1949 e seu líder Mao Zedong, por exemplo, foram forte inspiração para a formação do grupo, que incorporou ideias do grande timoneiro na luta pela libertação dos cidadãos afro-americanos. O ator sino-americano Bruce Lee também foi um grande ícone para a formação do imaginário da luta antirracista negra e anticolonialista nos Estados Unidos nos anos 1960.

A luta contra o racismo é uma só e o inimigo é o mesmo, portanto, deve ser vista como luta coletiva e não individualizada como tem ocorrido. Isso é péssimo, pois além de causar divisão, enfraquece os esforços, diminuindo o alcance das conquistas. As causas da opressão racista são estruturais e a exclusão de um determinado grupo ainda que minoritário apenas as reforça, perpetuando a discriminação social. O único caminho viável para uma sociedade mais justa e solidária deve ser a construção de pontes que levam ao intercâmbio e à solidariedade na luta contra o racismo.

*Ketline Lu é advogada, mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, gestora de escola, é especialista em Direito Constitucional e Direito Ambiental.


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** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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