"Precisam mais de nós que nós deles. Todos precisam de nós", respondeu o atual presidente norte-americano a uma jornalista brasileira sobre o Brasil. Para seu desespero, e de seus seguidores, já foi assim, mas não é mais.
Segundo dados do Lowy Institute, relativos a 2023, 145 economias do mundo comerciam mais com a China que com os EUA, e a China é o maior parceiro de comércio bilateral para 60 países, enquanto os EUA o são para 33 países somente[1].
Muitos países, porém, ainda dependem bastante dos EUA, como a Colômbia, do presidente Gustavo Petro, forçado – certamente por pressões internas também – a voltar atrás no desafio aos EUA na questão do modo de deportação dos imigrantes, que merece ficar na história pela coragem.
O Brasil não depende tanto economicamente dos EUA quanto a Colômbia. Nosso maior parceiro comercial é a China. Mas os EUA continuam importantes para nós, não só em termos econômicos mas políticos – inclusive pela cultura de nossa elite, em sua maioria colonizada e vergonhosamente submissa. A relação Brasil-EUA ainda é assimétrica.
Mas com a China não vale o "precisam mais de nós que nós deles".
A China necessita, economicamente, dos EUA, mas a recíproca é verdadeira. E reduzir a dependência econômica e tecnológica em relação aos EUA tem sido um objetivo estratégico perseguido pela China nas últimas décadas – com sucesso. A formação e expansão dos BRICS e seu projeto de desdolarização do comércio internacional[2], a chamada Nova Rota da Seda com o incremento do comércio exterior e do investimento chinês em inúmeros países, especialmente asiáticos e africanos, as políticas industriais e o estímulo ao capitalismo em áreas delimitadas do país, o fortalecimento do mercado interno, a tentativa de manejo das consequências sociais e ambientais negativas do capitalismo por meio de políticas públicas, em tudo isso a meta de fortalecer o país frente aos EUA se faz presente.
DeepSeek caiu como uma bomba
O comércio entre os dois países, deficitário para os EUA, tem diminuído. Mas não se trata só de volume geral de comércio, mas também da questão sensível das importações de insumos tecnológicos estratégicos.
E nesse ponto, caiu como uma bomba, não só econômica mas também geopolítica, o novo modelo de Inteligência Artificial (IA) chinesa, o DeepSeek, que compete em termos de igualdade com a IA das big techs norte-americanas. Com um preço muito menor de investimento, e com código-fonte do software aberto[3], ou seja, fruto de uma construção coletiva, cooperativa, em contraste com a caixa-preta dos algoritmos das caríssimas IAs das corporações norte-americanas.
O que derrubou o preço das ações das empresas dos EUA foi o baixo custo da IA DeepSeek
Os EUA vinham restringindo, por preocupações estratégicas, a exportação de chips e semicondutores avançados para os chineses, justamente para tentar evitar, ou dificultar, ou retardar, que desenvolvessem modelos de IA competitivos.
Mesmo assim os chineses conseguiram, e por um preço bem menor.
A questão do preço de investimento para desenvolver uma IA de alta qualidade, como a da DeepSeek, foi o que derrubou o preço das ações das grandes empresas de tecnologia norte-americanas nas bolsas de valores.
A OpenAI, criadora do ChatGPT, e outras companhias anunciaram, há poucos dias, que investiriam 500 bilhões de dólares em infraestrutura necessária para expansão de sistemas de IA, inclusive de fornecimento de energia[4] – a IA devora energia, uma pressão enorme sobre os recursos naturais do planeta e sobre o clima. Os 500 bilhões de dólares viriam, claro, não só das chamadas big techs mas de outros megainvestidores, interessados nos extraordinários retornos financeiros prometidos, assim como no potencial de controle e manipulação social e política da IA.
Como fica esse esquema de investimento bilionário e perdulário – além de politicamente autoritário e ecologicamente nocivo – quando um produto tão competitivo quanto os das corporações yankees é lançado a um preço bem menor, com menos impacto energético e ambiental, e código-fonte aberto?
Dizia-se, até agora, que os investimentos necessários para a IA seriam de tal monta, tão gigantescos, que somente megacorporações como as norte-americanas (que aderiram, em maior ou menor grau, ao fascismo do atual mandatário da Casa Branca) poderiam arcar com eles. Grandes instituições de pesquisa ocidentais, ou mesmo governos nacionais, por exemplo, não teriam cacife para desenvolver suas próprias IAs.
Como fica esse discurso oligopolista, imperialista e fatalista[5] agora?!
Agora que se demonstrou que, com menos dados, menos consumo de energia e bem menos dinheiro pode-se desenvolver IA de qualidade, competitiva, por meio de inteligência coletiva e colaborativa e de softwares livres?
Mas não se trata somente de software livre. Por trás do sucesso da IA da DeepSeek, há o pesado investimento chinês em educação, pesquisa, ciência e tecnologia[6]. É dessa visão de longo prazo e desse investimento no conhecimento[7] que surgem as inovações, e, mais importante, a soberania de uma nação.
O futuro é chinês
Em 1935, a China estava no auge da decadência e do caos, empobrecida, dividida numa guerra civil entre comunistas e nacionalistas, prestes a ser invadida pelos japoneses. Mesmo assim, Will e Ariel Durant afirmaram, naquele ano:
“É muito possível que a China ainda venha a produzir riquezas que nem os Estados Unidos as tiveram e uma vez mais, como tantas vezes sucedeu no passado, acabe liderando o mundo (…). Dentro de um século a China absorverá e civilizará os conquistadores, e assimilará toda a técnica do que tem hoje o nome de indústria moderna”.[8]
Tinham bola de cristal, esse casal?! Simplesmente conheciam profundamente a história da civilização chinesa. “Os períodos de caos na China não passam de transições (…) em seu longo passado a China já ‘morreu’ muitas vezes; e nunca deixou de renascer”[9].
A última “morte” da civilização chinesa começou na década de 1840, quando perdeu e foi humilhada na Guerra do Ópio, abrindo um período de definhamento que começou a ser revertido com a chegada de Mao Tsé-Tung ao poder, em 1949, e ficou definitivamente para trás com as reformas de Deng Xiao Ping, na década de 1980. Um período de 100 a 140 anos. Longo para a régua temporal de nossas vidas. Mero intervalo para uma civilização de quatro milênios.
Civilização admirável, mas, como todas as outras, não perfeita ou isenta de problemas.
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O confucionismo, seu principal lastro sociocultural é, mais que uma religião, uma filosofia de vida pragmática e benevolente: o ser humano é visto como tendencialmente bom, os erros e malfeitos (não há propriamente a noção cristã de “pecado”) decorrem, basicamente, da ignorância, da deficiência de educação e de formação dos indivíduos e das coletividades[10]. Mas é, também, hierárquico, conservador e patriarcal. Há uma forte tendência coletivista, especialmente por meio dos laços familiares, importantíssimos para os chineses. Mas não há uma tradição democrática robusta.
Entre suas luzes e sombras, qual o segredo da longevidade e vitalidade da civilização chinesa?
Difícil cravar uma resposta única, mas vale lembrar o que o professor da Universidade de Harvard John King Fairbank, grande especialista na história chinesa, qualificava como “devoção” do povo chinês pelo seu estilo de vida.
A China, ao longo de sua trajetória, teve uma relação difícil com os “povos bárbaros”, especialmente da Ásia interior, a oeste e norte do território chinês. Uma relação que misturava diplomacia e guerra, em que a China agredia e era agredida. Muitas vezes os invasores guerreiros das estepes asiáticas penetraram no território, no Estado e na sociedade chineses – as invasões dos mongóis, no século XIII, e dos manchus, no século XVII, foram apenas as mais terríveis e duradouras, tendo formado as dinastias Yuan e Qing, respectivamente, mas não foram as únicas.
Nessa relação ambígua, ora pacífica ora tensa, com os povos vizinhos “bárbaros”, não chineses, que invejavam e odiavam, mas, ao mesmo tempo, admiravam e imitavam aquela nação tão requintada, esses povos cumpriram para os chineses o papel de grande “outro”, definidor da própria identidade chinesa. E do orgulho por sua superioridade cultural. Todos os povos que entraram em contato, violento ou pacífico, com a China foram por ela aculturados.
Como afirma Fairbank, ao verem-se reiteradamente invadidos, “os chineses encontraram refúgio em suas instituições sociais e em sentimentos de superioridade em relação à própria cultura e à própria estética – atributos que não poderiam ser levados pelos forasteiros”. Fairbank conclui, então que “a história da China engloba tanto o povo chinês quanto os não chineses da Ásia Interior (que) desempenharam um papel crucial na história do país”.[11]
E que papel teria o Brasil nesse futuro em que a China terá cada vez mais protagonismo?
Ocorre, agora, que, após a “ressurreição” experimentada com Mao e Deng Xiao Ping, o “outro” com que a China se defronta atualmente, o Ocidente, não é uma civilização culturalmente inferior a ela, como até hoje os chineses se acostumaram a lidar – nem superior.
Esse amálgama de fascismo e neoliberalismo, de Trump, Bolsonaro, Milei e outros, trará novo surto descivilizatório
O Ocidente também tem suas luzes e sombras. Dentre as luzes, a tradição republicana e democrática. Respondendo pelas sombras, o nazifascismo, responsável por um verdadeiro surto descivilizatório nas décadas de 1920 e 1930, e que retorna agora, cada vez mais irmanado ao neoliberalismo.
Esse amálgama de fascismo e neoliberalismo, expresso com tanta arrogância por Trump, Bolsonaro, Milei e outros, trará novo surto descivilizatório, que rebaixará o Ocidente frente a uma civilização poderosa como a da China?
E que papel teria o Brasil nesse futuro em que a China terá cada vez mais protagonismo e em que a democracia se verá cada vez mais sitiada?
Esta é uma questão que fica para outros artigos.
Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia pela UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS)
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Leia outros artigos de Rubens Goyatá Campante em sua coluna no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Notas
[1] Disponível em: https://interactives.lowyinstitute.org/features/china-versus-america-on-global-trade/. Acesso em 30.01.2025.
[2] Algo que aterroriza os EUA, que viabiliza seu imenso déficit público pelo fato de o dólar ser a moeda do comércio internacional.
[3] Grosso modo, código-fonte é um conjunto claro e preciso de instruções, escritas em linguagem de programação computacional, que norteia os programas de computador, uma espécie de “mapa de navegação”.
[4]Ao contrário do que muitos supõem, o universo digital, a internet, a Inteligência Artificial, tudo isso demanda uma razoável estrutura física, de cabos e condutores a centros de armazenagem de dados, passando por muita, mas muita mesmo, energia.
[5] Em artigo publicado em novembro passado no Brasil de Fato-MG, alertamos para o fatalismo tecnológico do capitalismo, o qual não apenas desenvolve somente as tecnologias que são de seu interesse de lucro e dominação, como ainda propaga que não haveria alternativas ao modo pelo qual essas tecnologias teriam sido desenvolvidas. Não teria como ser de outro jeito. Pura conversa fiada. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2024/11/06/marx-allende-e-a-rejeicao-do-fatalismo-tecnologico.
[6] Enquanto isso, como noticia a revista Nature, o candidato a ditador da Casa Branca estarrece a comunidade científica de seu país ao congelar e cortar subsidios federais à Ciência. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-025-00266-1. Acesso em 29.01.2025.
[7] E nos últimos anos, a China, conhecida na comunidade científica internacional como um “país de engenheiros”, devido ao foco nas ciências exatas, tem investido e formado, também, cada vez mais cientistas sociais. Disponível em: https://wid.world/www-site/uploads/2024/11/WorldInequalityLab_WP2024_24_The-Making-of-China-and-India-in-21st-Century_Final.pdf. Acesso em 29.01.2025. Fascistas toscos costumam desprezar as ciências sociais: “para que servem?”. Qualquer pessoa com um mínimo de inteligência e de caráter sabe que elas são cruciais, pois são o pilar do pensamento crítico e da capacidade renovadora do ser humano.
[8] DURANT, Will. Nossa herança oriental. Rio de Janeiro, Record: 1963, pg. 552. Esta citação está fiel à edição consultada. A obra foi escrita em conjunto pelo casal Will e Ariel Durant. O machismo predominante, entretanto, fez com que se omitisse, durante anos, o nome de Ariel como coautora. Nesta edição brasileira de 1963 do livro, lançado originalmente nos EUA em 1935, consta somente o nome de Will como autor.
[9] Op. cit., pg 553.
[10] Historicamente, o principal veículo do confucionismo no campo político e administrativo foram os “mandarins”, elite governante civil, altamente sofisticada e educada. Não é a toa que o principal idioma da China seja conhecido como “mandarim”. Houve, entretanto, outra escola de pensamento político que competiu e contrabalançou, ao longo da História, a visão mais generosa do confucionismo. Foi o chamado “legalismo”, doutrina que, segundo Rosana Pinheiro-Machado, “acreditava na necessidade de leis para corrigir o ser humano, que contrariamente ao confucionismo, é percebido como essencialmente degradado e não benevolente. Um dos princípios básicos do legalismo é que as imperfeições humanas devem ser punidas.” Para ela, a história política da China é uma constante reelaboração desses dois legados, do confucionismo e do legalismo, misturando-os e reinterpretando-os. Fundamental, entretanto, lembrar que o legalismo restringia-se ao campo politico e administrativo, enquanto o confucionismo penetrava todos os aspectos do modo de vida chinês, pois, “enquanto narrativa unificadora cultural, o confucionismo oferecia um arcabouço de ideias muito mais completo e complexo”. PINHEIRO-MACHADO, Rosana. China, passado e presente: um guia para compreender a sociedade chinesa. Porto Alegre: Ed. Artes e Ofícios, 2013, pg. 35-36.
[11] FAIRBANK, John King; GOLDMAN, Merle. China: uma nova história. Porto Alegre: L&PM, 2006, pgs 40-41.