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Contra a mortificação manicomial: Quem era (é) Raquel?

O manicômio mortifica antes mesmo de a pessoas ser depositada nele

No dia 25 de dezembro, Raquel França de Andrade morreu no Hospital São Vicente de Paulo, manicômio público e ilegal do Distrito Federal. A situação de Raquel não é um caso isolado na história dos manicômios em nosso país. A título de exemplificação, citamos as 60 mil mortes entre 1930 e 1980 no Hospital Colônia, manicômio que ficava em Barbacena, Minas Gerais.

O manicômio mata! Contudo, a perversidade da mortificação manicomial é que ela vai além dos óbitos que o próprio manicômio provoca ou contribui para ocorrerem. O manicômio mortifica antes mesmo de a pessoas ser depositada nele.

Por meio da lógica asilar-manicomial, há uma série de processos de desumanização, de coisificação e, portanto, de mortificação subjetiva, simbólica – com consequências concretas – que fazem com que determinadas pessoas sejam depositadas nos muros manicomiais, como se ali fossem tratadas. Queremos dizer que para que alguém seja manicomializado é necessário já ter passado por inúmeros processos de mortificação. A manicomialização é uma destas etapas de mortificação – e produz outras.

:: Devemos fechar o manicômio se temos poucos serviços e uma rede insuficiente? ::

Nem mesmo o óbito finda esse continuum da morte. Vejamos o caso de Raquel, por exemplo. Mesmo após de sua morte vemos que nada foi feito de diferente no HSVP; nenhuma mudança concreta, até para não termos outros casos como o de Raquel. Além disso, são inúmeros os comentários nas redes sociais, em matérias sobre a sua morte, banalizando o seu óbito, quando não a depreciando, fazendo graça, justificando a sua fatalização.

Em suma, Raquel continua a ser morta mesmo após o seu óbito. É isso o que o manicômio faz, inclusive, com quem está fora dele: mata, mortifica, desumaniza. Mesmo após morta, o manicômio e a sua lógica, que está em nossa sociedade, que é a nossa sociedade e reside em nós, continua matando Raquel.

Outra faceta dessa mortificação de Raquel, e de qualquer pessoa manicomializada, é que as referências a ela são sempre objetificadoras. É a fulana doida; é o beltrano esquizofrênico; é o cicrano bicho. Melhor dizendo, as referências nunca são à pessoa como pessoa, como totalidade.

Geralmente se referem a algo dela, seja(m) seu(s) diagnóstico(s) ou aquilo que entendemos como doença, ou para depreciá-la – quando não as duas coisas juntas. Eis a reprodução histórica da ideia do louco irracional e perigoso, que se funda à da mulher histérica, da pessoa negra como violenta, dentre tantas outras.

Por isso que gritamos, num grito que ecoa a própria voz de Raquel e de tantas outras pessoas: paremos com a mortificação manicomial! Isso começa com o fechamento de todos os manicômios, como o HSVP, mas vai além dele. É necessário dar fim ao circuito manicomial mortificador que é reproduzido por nós, e que vai além dos muros, grades, camisas de força, eletrochoques e afins.

Olhemos as fotos de Raquel e a enxerguemos como a pessoa que é. Deixemo-nos impregnar com sua alegria captável por fotografias. Raquel não era o seu diagnóstico. Raquel não era coisa ou objeto. Raquel não merecia ser manicomializada. Nenhuma pessoa ou ser merece ser manicomializado. Paremos com a mortificação manicomial de Raquel!

                                                                         
Raquel Franca de Andrade / Foto: Reprodução

Raquel era uma mulher jovem, 24 anos, cheia de sonhos e de vivacidade. Raquel era alta que só; um mulherão, no sentido figurado e literal; tinha um sorriso tão grande e bonito como ela própria. Raquel era também “Quel”, apelido carinhoso que seu irmão a chamava.

Raquel era brincalhona e extremamente afetiva, carinhosa. Raquel era animada, gostava de se arrumar e ficar bonita. Raquel era querida, era amada. Raquel era tanto que transbordava às contenções (físicas e mecânicas) do manicômio. Raquel não era, Raquel é. Contra a continuidade de sua mortificação, Raquel continua viva. Viva, Raquel!

Por isso tudo – e muito mais – é que a mortificação de Raquel não será páreo para a própria Raquel. Raquel fechará o São Vicente de Paulo!

Raquel, PRESENTE!

Pelo fechamento imediato do HSVP!

Por uma sociedade sem manicômios!

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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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