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O tabuleiro e outras joias negras

O tabuleiro fixou o cruzamento entre dois mundos e colocou-se como parte da arquitetura da Bahia

No Museu de Arte Contemporânea da Bahia (MAC) está em exposição “Dona Fulô e Outras Joias Negras”. Realizada pelo CCBB Salvador e com curadoria de Marília Panitz, Eneida Sanches e Carol Barreto, a mostra apresenta uma rara coleção das famosas “Joias de Crioula”, usadas por mulheres negras livres e libertas na Bahia. Tendo a fotografia de Dona Fulô, adornada, como coluna vertebral, a iconografia narra não só a história por trás das peças valiosas de Dona Fulô, mas aponta para uma outra preciosidade não feita de ouro e/ou gemas: o tabuleiro. 

A tradição das comidas de tabuleiro ou comércio ambulante de comidas, na Bahia, remonta a uma prática que já existia na costa ocidental da África muito antes da invasão portuguesa. Ali, mulheres faziam e vendiam alimentos, tornando-se provedoras de suas famílias e autônomas em relação aos homens. Pelas bandas de cá, essa modalidade de comércio foi batizada de “ganho”. O ganho teve múltiplos sentidos: a prestação de serviços aos senhores escravistas que se tornavam os donos dos lucros obtidos, a possibilidade de alforriar-se, meios de socialização entre negros e brancos, contribuição para obrigações no candomblé e criação das irmandades. 

O tabuleiro, recheado de comidas alicerçadas em África, era muitas vezes levado pelas ganhadeiras em suas próprias cabeças. Com verdadeira maestria e equilíbrio – em um trajeto repleto de pedras, com os pés descalços – as mulheres “de ganho” do século XIX abriram caminho para que o tabuleiro, ainda em seu tempo, descesse de suas cabeças e ocupasse um lugar no chão da cidade. Apoiado em uma estrutura de madeira em forma de X, o tabuleiro fixou o cruzamento entre dois mundos e colocou-se como parte da arquitetura da Bahia. 

Como agente, o tabuleiro tornou pública a história, a cultura e a religiosidade dos baianos que foram obrigados a se esconder, em um pano de fundo descolorido pelo colonialismo. As indumentárias reservadas aos rituais do candomblé, os cardápios sagrados que ganharam materialidade pelas mãos das iabassês, as ferramentas e os modos de fazer, os cheiros e as texturas situam-se até hoje em vários pontos da cidade, graças, também, à ação do tabuleiro. Cravejando em si as herdeiras dos ganhos – as baianas de acarajé – ainda que tenha ganhado um formato diferente de outrora, ele grita silenciosamente o que um dia disse o ilustre Jorge Portugal: “Eu sou parte de você, mesmo que você me negue”. 

Uma das vantagens de olhar para a exuberância do ouro é que ele reflete para nós aquilo que somos, e o que éramos. 

 

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